Não adianta fechar os olhos, a digitalização do varejo já se tornou realidade. É equivocado supor que as transformações que a internet vem impondo ao mercado não requerem respostas imediatas ou que elas se limitam, ao contrário de quase 20 anos atrás, à oferta de produtos online. Os novos hábitos de consumo da era smart são muito mais desafiadores do que simplesmente vender em mais de um ambiente ou respeitar as particularidades deste. O futuro do varejo está na conveniência e, independentemente do canal pelo qual o consumidor optar, o varejista precisa estar preparado para atendê-lo – seja na loja física, no aplicativo do celular ou em ambos e ao mesmo tempo.
A jornada de compra não é mais a mesma e oferece diversos caminhos aos clientes. Em uma situação hipotética, mas ideal para a realidade dos dias atuais, quem deseja adquirir um notebook, por exemplo, começa a empreitada pesquisando as melhores opções. Para isso, conta com os sites comparadores de preços e reviews publicados, inclusive, nas redes sociais. Se o consumidor continuar inseguro diante de tantas opções de compra, sua segunda iniciativa é dirigir-se à loja mais próxima para testar o seu objeto de desejo e, com a decisão tomada, efetuar a compra ou recorrer ao site da concorrência pelo smartphone.
O bom atendimento nessa hora faz a diferença. O vendedor pode oferecer uma contraoferta ou a retirada em outra filial, caso não tenha o produto em estoque. Se essa opção não for conveniente para o consumidor, a venda online é outra possibilidade, mas com o risco de ele ser fisgado pelo caminho por uma oferta mais atraente de outra rede. A melhor alternativa é o varejista realizar a venda imediatamente, pela internet, programando a entrega no endereço de preferência do cliente. O pagamento é feito na hora, sem fila para o caixa, a partir de um gadget em posse do vendedor.
Enigma para o mercado
Ao receber o produto, o consumidor certamente irá titubear ao responder se comprou na loja física ou pelo online, porém terá a certeza de que recorreu a uma loja e essa atendeu aos seus anseios e necessidades. Isso mostra o quão complexas têm se tornado as operações do varejo. O conceito e as discussões acerca da multicanalidade não são novidade, mas o mercado varejista, sobretudo o do segmento de eletros, com algumas exceções, está longe de aproximar essas duas realidades, ou seja, estabelecer uma ponte entre o físico e o virtual, que se convencionou chamar de phygital. O momento, ainda mais com conjunturas macroeconômicas repletas de incertezas, coloca os lojistas diante de um enigma digno da Esfinge de Tebas: quem não encontrar a resposta certa para todos esses questionamentos, assim como no mito, será devorado.
Na avaliação do vice-presidente de distribuição e varejo da Totvs, Ronan Maia, para atender às atuais demandas de consumo, em qualquer parte do mundo, o varejo deve, cada vez mais, investir na adoção de uma cultura digital. “Os consumidores se digitalizaram muito mais rápido do que as empresas, por isso elas precisam se adaptar. Se eles aceitam e se acostumam a essas mudanças, passam a não querer mais a experiência anterior, descartando-a.” No caso do segmento de eletromóveis, essa necessidade é ainda mais urgente. O executivo chama a atenção para a necessidade desse aculturamento, uma vez que aproximadamente 30% das vendas de eletros no Brasil são feitas pela internet.
Com a disseminação da internet, por meio dos smartphones, as pessoas incorporaram novos hábitos e comportamentos, principalmente relacionados ao consumo, alguns deles ditados por empresas que já nasceram digitais, como é o caso da Amazon e da Netflix. “Não é só estar no Facebook, ter site para compra ou app. É preciso se conectar com o consumidor e traçar uma estratégia para isso”, diz Ronan. Mercados mais maduros, como o inglês e o americano, têm repensado sua atuação, mas não estão plenamente convictos de qual rumo seguir. O bilionário e guru de investimentos norte-americano Warren Buffet profetizou que, daqui a 10 anos, o varejo será completamente diferente do formato atual, sobretudo o das lojas de departamento, que agora já são online. O argumento sustenta a decisão de sua companhia, a Berkshire Hathaway, que em fevereiro abriu mão das ações que detinha do Walmart.
Em Londres, é evidente que a área de retirada de produtos adquiridos pela internet tem ganhado cada vez mais espaço nas lojas em comparação à destinada ao mostruário. No mercado americano, outra particularidade observada nesse sentido é o declínio acentuado nas vendas das lojas de departamentos, também em decorrência do avanço do e-commerce. O segmento está em baixa desde 2001. Números publicados pelo site Business Insider revelam que as vendas do canal online superam as do físico há pelo menos cinco anos. Em 2017, a primeira categoria deve faturar mais de US$ 100 bilhões, enquanto a projeção para o faturamento da segunda está abaixo dos US$ 40 bilhões. As dificuldades do segmento são evidentes: em março deste ano, a rede Sears reconheceu, em seu relatório anual, preocupação com a sua capacidade de continuar operando, após perdas de US$ 10 bilhões nos últimos anos. Ela não é a única a baixar as portas de algumas de suas filiais – endossam a lista a JCPenney e a Hhgregg.
Desafios locais
O comércio eletrônico tem 11% de participação no total das vendas do varejo americano. Entretanto, 58% delas são influenciadas pelo meio digital, mesmo quando efetuadas no canal físico. É possível supor que o Brasil segue essa mesma tendência. Por se tratar de uma categoria cujo tíquete médio é mais elevado, a decisão de compra de eletrodomésticos e eletroeletrônicos começa necessariamente na internet. Ninguém, hoje em dia, adquire algum desses produtos sem antes comparar preços online. “O impacto da digitalização desse segmento de eletroeletrônico é bem maior”, alerta o vice-presidente de distribuição e varejo da Totvs.
A pesquisa Total Retail 2017, realizada pela consultoria PwC com 24 mil consumidores em 29 países, incluindo o Brasil, aponta que 75% dos entrevistados se declararam adeptos do comércio eletrônico há mais de três anos. Na média global, essa proporção é de 64%. Quando os brasileiros ouvidos para o estudo foram questionados sobre a frequência de compra em diferentes canais, aquelas feitas via PC se equiparam às das lojas físicas, ambas com 55% de assiduidade mensal. Nesta pesquisa, fica evidente também a influência da internet sobre o consumo. Os sites de comparação de preços e as redes sociais são determinantes para 52% e 40% dos entrevistados, respectivamente.
No caso das redes sociais, elas representam canais de troca de informações, não apenas entre consumidores, mas também entre estes e suas varejistas preferidas. E a relevância destas ferramentas, mais uma vez, destaca o País em relação à média global do estudo da PwC. Para 61% dos respondentes, as redes sociais são uma forma de ler avaliações e comentários a respeito de produtos; 36% as apontam como boa fonte de anúncios; 49% as acham úteis para receber ofertas promocionais; 27% recorrem a elas para fazer avaliações e comentários, e também para descobrir novas marcas e itens de consumo (44%).
A pesquisa apenas reforça uma realidade que há tempos vem sendo observada, embora, talvez por conta da crise que impôs outras prioridades, ainda não se tenha uma agenda clara a respeito dos rumos que devem ser tomados. Dentre os atributos considerados prioritários na experiência de compra, nenhum deles atinge 60% de satisfação entre os entrevistados. Entre esses itens, dois aspectos chamam bastante a atenção: a importância do atendimento e do conhecimento dos vendedores sobre os produtos e a capacidade de verificar, rapidamente, o estoque em outra loja da rede ou na internet. São esses dois pontos que os consumidores mais valorizam, com 88% e 80% de relevância, respectivamente.
Migração de canais
Embora sejam atributos prioritários, apenas 56% das pessoas ouvidas consideram satisfatório o atendimento dos vendedores e 57% delas dizem ter facilidade em saber a disponibilidade dos produtos em outros canais. Essa proporção pode impactar, diretamente, o fluxo de pessoas nas lojas. Na última edição do congresso promovido pela National Retail Federation (NRF), no início de 2017, foi apresentado um estudo global que apontou queda de 15% no movimento das lojas, o que não representa, necessariamente, retração nas compras, mas uma migração para o canal online.
A frustração do consumidor aparece também no levantamento do Instituto de Transformação Digital da Capgemini, com 6 mil consumidores de mercados mais maduros, entre eles Estados Unidos, China Alemanha e Reino Unido. A experiência de ir a uma loja é tão frustrante que um terço dos entrevistados diz que prefere lavar louças a ter que visitar uma delas. A consultoria também ouviu 500 executivos do setor e evidenciou a divisão de opiniões entre os gestores das redes e seus clientes. Enquanto 81% dos empresários afirmam ver relevância no ponto de venda físico, apenas 45% dos consumidores concordam com essa visão. Por outro lado, mais da metade desses executivos (54%) reconhecem lentidão em digitalizar suas lojas físicas.
Os sinais são claros: existe a necessidade de tornar a experiência de compra única, independentemente do canal, e isso deve ser a prioridade máxima, uma vez que a principal insatisfação dos consumidores está no fato de não disporem nas lojas físicas dos recursos online. No estudo da Capgemini, 71% dos entrevistados consideram difícil a comparação de produtos; 66% estão irritados com as longas filas nos caixas; 65% se queixam de que as promoções realizadas nas lojas físicas não são relevantes; e 65% simplesmente não conseguem encontrar os produtos de que precisam.
A pesquisa sinaliza outro aspecto mais grave: os consumidores daqueles países vêm reduzindo a dependência do varejo tradicional e mais da metade deles está aberta a comprar diretamente de fabricantes no futuro (57%) ou de players como Google e Facebook (59%). A dificuldade de atrair consumidores às lojas e fazer com que essa visita seja convertida em compra também vem sendo relatada pelos varejistas que procuram a YDreams no País, agência especializada em ambientes inteligentes e experiência. “As pessoas consultam as grandes marcas e depois compram a mais barata, pela internet. Muitos clientes dizem estar com a loja cheia, mas isso não se converte em venda. Há um megadesafio acontecendo, ainda mais no segmento de eletros, quando o consumidor não leva o produto na hora. Se vou ter que esperar a entrega de qualquer forma, é melhor comprar em casa”, destaca Karina Israel, diretora-executiva.
A volta dos que não foram
O medo de que o e-commerce acabaria com as lojas físicas foi superado pelas evidências de que um canal não exclui o outro. Afinal, cada particularidade desses dois ambientes satisfaz um aspecto da experiência de compra. Isso vem moldando novos formatos, principalmente para o varejo físico, que assumiu o protagonismo de ser um local para experimentação, algo que o online não pode suprir. Prova disso é que marcas exclusivamente online, como a Amazon, estão investindo em lojas físicas. Entretanto, questões relativas à comodidade do ambiente virtual devem ser incorporadas a esses pontos de vendas.
No Brasil, talvez como consequência da recessão, os varejistas já perceberam que as lojas grandes têm custo mais elevado do que o retorno. Seu papel, hoje, é o de showroom, local onde os consumidores vão, principalmente, para conhecer o que querem comprar. “O ponto físico associado com a tecnologia coloca as pessoas em um estado de encantamento que gera o desejo. Quando elas vão a uma loja e deparam com um ambiente que faz com que se imaginem em casa, experimentando o produto, acabam comprando. Mas, como oferecer uma gama enorme de itens em um espaço físico limitado ou no online?”, questiona Marcos Alves, diretor de produtos e novos negócios da YDreams.
A experimentação, explica o executivo, passa a fazer parte da construção de uma marca. Ele cita como exemplo as lojas da Apple, cuja proposta vai muito além da venda de produtos. “É isso que a transforma em uma love brand. Os fabricantes que, até então, sempre venderam nos grandes magazines, agora querem dominar a comunicação com o seu público, caso contrário viram commodities. Antes de começar a ser pressionados pelos canais de venda, eles perceberam a importância desse contato para criar uma conexão emocional”, diz Marcos. O desafio, portanto, é agregar algo à compra para que a decisão do consumidor seja tomada não apenas com base no preço.
Diante desse cenário, a oferta de serviços associados à compra merece ser analisada. “Hoje, o consumidor já está disposto a pagar um pouquinho mais se puder agendar a entrega e associá-la à instalação, por exemplo”, acrescenta o diretor da YDreams. Na opinião de Karina, o varejista olha para o seu negócio com uma visão que não condiz mais com os dias atuais. “Ele está tão habituado aos problemas de estoque, logística e mostruário que não enxerga que o mundo está mudando, e não só na maneira como a sua loja se relaciona com as pessoas. Esse é o problema, ele não está mais nos tempos dos seus avós.”
Mudanças na prática
Exemplos simples mostram que os tempos são outros. Se antes a posição ideal de comunicação da marca era na altura dos olhos, hoje, o chão pode ser mais indicado, diante do hábito que as pessoas adquiriram de andar mirando para baixo, dividindo a atenção dos passos com os smartphones. “Antes, ninguém cogitava colocar a sinalética no chão, mas as coisas mudam, e é preciso se adaptar. Existe um gap enorme entre o mundo que o varejista vive, que é quase igual há 50 anos, e o do consumidor. Por que, em casa, ele localiza o produto no site, mas não consegue o mesmo dentro da loja? Se esta não tem o produto, por que ele consegue encomendar no online? E comparar preços? Faltam muitas ferramentas às quais ele se acostumou e é isso que chamo de gap”, diz Karina.
Mesmo em municípios do interior, onde a infraestrutura, sobretudo de conexão, é mais incipiente, os hábitos dos consumidores vêm mudando com a incorporação da internet na jornada de compra. Nas regiões mais afastadas, muitos empresários têm a consciência da mudança em curso, mas acreditam que ela vai demorar para alcançá-los. “A tendência de quem não começar a pensar em uma estratégia mais digital é a de ser deixado para trás”, destaca Ronan. A urgência para aprimorar a experiência multicanal, segundo ele, também é fruto da necessidade de atender aos millenniums, geração que já nasceu conectada e avança como força de trabalho e mercado consumidor. “As empresas precisam estar dispostas a ter cultura digital para não perder esse novo público. O tradicional pode até continuar como cliente, mas e os nativos do meio digital que estão chegando ao mercado?”, questiona.
O executivo da Totvs orienta que é preciso começar a introduzir essas mudanças nas operações, e parte da resistência dos lojistas em encarar este fato está relacionada ao retorno do investimento. “Se ele não consegue vinculá-lo a um aumento nas vendas, não vai trabalhar nisso. É preciso quebrar paradigmas e experimentar, com ousadia, novas formas de se relacionar com o consumidor. E nem tudo é previsível. É preciso parar para conhecer o cliente, entender a sua jornada e fazer ajustes, caso queira dar a ele uma experiência mais digital.”
Experimentação ou morte
Testar coisas novas é o caminho. Se iniciativas-piloto, restritas a filiais específicas, derem o resultado pretendido ou possibilitarem informações que melhoram a experiência de compra, o varejista pode adaptá-las para as demais filiais. “É um trabalho de tentativa, aprendizado e adaptação. Ao colocá-lo para funcionar, é possível perceber se ele faz sentido ou se tem adesão. Por isso são investimentos curtos. O Magazine Luiza, por exemplo, se antecipou e se preparou para esse momento. Começou a treinar não só os vendedores, mas também os clientes para lidarem com essa cultura digital”, conta Ronan.
A rede mantém, desde 2014, o Luizalabs, laboratório de tecnologia e inovação para o varejo. É evidente pela sua atuação no mercado que, há tempos, o ambiente online, ou melhor, a digitalização das suas operações, é prioridade para o CEO da empresa, Frederico Trajano. A incubadora de ideias foi criada quando o executivo percebeu a necessidade de apartar a área do departamento de e-commerce para se dedicar apenas a novas soluções. Por conta desses investimentos, a rede é pioneira não só no segmento de eletros mas no varejo como um todo. Quem se inspirou e também adotou estratégia semelhante é a Lojas MM (suas experiências são tema de matéria desta edição).
O momento é complexo, principalmente porque as mudanças vêm acontecendo rápido demais, antes mesmo que o mercado consiga se preparar para elas. “O que o varejo deve fazer? Testar, verificar, ajustar e melhorar, até encontrar um novo caminho. Apesar disso, temos algumas pistas, a partir daquilo que não funciona. Para que servirão as lojas? Para experiência e engajamento. É preciso maximizar isso. Afinal, por que os consumidores vão sair do seu lar para ir a algum lugar? Até as online estão indo para o físico por chegarem a um limite e não crescerem mais. Não se consegue engajamento apenas pelo online, o crescimento em visibilidade é limitado”, alerta Karina.
(Por Eletrlar.com – Igor Carvalho) varejo, núcleo de varejo, retail lab, ESPM