Tudo relacionado à bitcoin é envolto em uma aura de mistério. Cerca de US$ 500 milhões sumiram de uma bolsa on-line de Tóquio. Um promotor de Manhattan prendeu o vice-presidente do conselho de administração de sua plataforma de negociação mais importante, um jovem de 24 anos, sob acusação de lavagem de dinheiro relacionada a drogas. A identidade de seu criador permanece uma incógnita. Em 2014, ela perdeu 66% de seu valor e já caiu outros 44% nas primeiras duas semanas de janeiro. Na carta que enviou aos investidores no fim do ano, Warren Buffett foi enfático: “Fiquem longe dela.”
A moeda digital, conhecida mundialmente apenas como bitcoin, tem só seis anos, mas muitos de seus críticos já a consideram morta. Tais previsões lúgubres, porém, estão deixando de lado uma questão bem mais importante: independentemente da morte ou não da bitcoin, a tecnologia que a sustenta veio para ficar. E a tecnologia se tornará ainda mais influente à medida que desenvolvedores criam versões novas e melhores, e clones.
Nenhuma moeda digital vai remover o dólar de seu trono no curto prazo, mas a bitcoin é muito mais que uma moeda. É um sistema descentralizado e radicalmente novo de administrar a forma que as sociedades trocam valores. É, simplesmente, uma das inovações mais poderosas no mundo das finanças em 500 anos.
Se aplicado amplamente para o funcionamento interno da economia global, esse modelo poderia eliminar trilhões em tarifas financeiras; informatizar muito do trabalho feito por processadoras de pagamentos, órgãos de governo, advogados e contadores; e criar oportunidades para bilhões de pessoas que atualmente não possuem conta bancária. Muito valor será gerado, mas muitos empregos também ficarão obsoletos.
A bitcoin tem algumas falhas indiscutíveis, pelo menos na sua iteração atual. A volatilidade do seu preço é significativa. (A quem agradaria ver o custo do das compras de supermercado variar até 10% toda semana?) Seu anonimato a tornou um paraíso para traficantes de drogas. As “carteiras” (como os aplicativos individuais que administram as contas de bitcoin são conhecidos) se mostraram vulneráveis a ataques cibernéticos e roubos, mesmo as de grandes bolsas de bitcoin, como a Mt. Gox, de Tóquio, e a Bitstamp, da Eslovênia.
Apesar de o programa base da bitcoin ter resistido aos hackers por seis anos, os ataques a negócios relacionados à moeda virtual criaram a impressão que ela não é uma forma segura de armazenar dinheiro. Até essas percepções serem superadas ou a bitcoin ser substituída por uma moeda digital superior, o público permanecerá desconfiado quanto ao conceito, e os reguladores tentarão invalidá-la.
Como qualquer tecnologia jovem, a bitcoin é uma obra em construção, mas seu inovador software que é a base da moeda está constantemente sendo melhorado. Ela tem o código aberto e é livre de direitos autorais, portanto, é acessível a qualquer pessoa que queira vê-la por dentro, copiá-la, sugerir melhorias ou criar aplicativos para a moeda digital.
Inspirado por esse potencial, “provavelmente 10 mil dos melhores programadores do mundo estão trabalhando na bitcoin”, estima Chris Dixon, sócio da empresa de capital de risco Andreessen Horowitz. Esse exército voluntário tem desenvolvido uma criptografia de nível militar para tornar as carteiras de bitcoin mais seguras e asseguráveis, além de novas ferramentas de operação que ajudem a estabilizar sua cotação. As falhas da moeda digital estão sendo resolvidas.
O funcionamento da bitcoin e outras moedas digitais pode ser confuso. Quando pensamos de forma abstrata em uma moeda, tendemos a pensar em uma moeda física em um mundo real — uma nota de dólar ou moeda de ouro —, então pensamos na bitcoin como um tipo de equivalente digital, da mesma forma que um arquivo em Word é um substituto digital para uma página física de texto.
Mas não existe um equivalente digital para uma nota de dólar. As bitcoins existem puramente como um registro em um sistema contábil — um livro-caixa público e transparente conhecido como “blockchain” que registra os saldos e realiza transferências entre “endereços” especiais de bitcoin. Possuir bitcoins não significa ter notas bancárias digitais em um bolso digital; significa que você tem o direito a um endereço de bitcoin, com uma senha secreta, e o direito de transferir seu saldo para outra pessoa.
Esse livro-caixa é que dá à bitcoin a possibilidade de romper as finanças globais. No atual sistema monetário baseado no dólar, nós confiamos nos bancos e outros intermediários que cobram tarifas para atuar como guardiões de quase todas as transações.
Essas instituições centralizadas mantêm muito bem guardados os livros-caixa e, com essas informações, determinam se seus clientes têm crédito suficiente para passar cheques, comprar produtos com cartões de crédito ou fazer transferências.
Com a bitcoin, o saldo mantido por todo usuário do sistema monetário é registrado em um livro-caixa amplamente distribuído e publicamente exibido que é atualizado por milhares de computadores particulares conhecidos como “mineradores”.
Para entender como ele funciona e porque é mais eficiente e mais barato que o sistema existente, veja como funciona a compra de uma xícara de café na lanchonete mais próxima. Se pagar com cartão de crédito, a operação parece simples: você passa o cartão, pega o café e sai. Na verdade, antes de a lanchonete ser paga e seu saldo bancário ser descontado, várias instituições — como a administradora do cartão de crédito, seu banco, o banco da lanchonete, a processadora de pagamento, a rede de compensação administrada pelo banco central regional — terão compartilhado parte das informações sobre sua conta ou interferido no fluxo do dinheiro.
Se tudo correr bem, o banco confirmará sua identidade e o crédito positivo e enviará o pagamento para o banco da lanchonete em dois ou três dias. Pelo serviço, a lanchonete paga uma tarifa entre 2% a 3%.
Agora, para pagar em bitcoin (mais de 82 mil estabelecimentos já aceitam a moeda em todo o mundo), é necessário ter a moeda. Se não possui, pode comprar de uma das bolsas e corretoras on-line usando uma transferência simples de sua conta bancária. Então, vai alocar as bitcoins em uma carteira, que funciona como uma conta on-line.
Na lanchonete, você vai abrir o aplicativo da carteira em seu smartphone e segurar o código de leitura próximo do dispositivo do caixa. Com isso, sua senha irá desbloquear um endereço de bitcoin e publicamente informar à rede de computadores bitcoin que você está transferindo o valor em dólar, por exemplo US$ 1,75, equivalentes em bitcoin (cerca de 0,0076 bitcoin) ao endereço da lanchonete. Isso leva apenas segundos e aí você pode sair da lanchonete com seu café.
O que acontece depois é crucial. Ao contrário do sistema existente, sua transação é imediatamente transmitida para o mundo (em dados alfanuméricos que não podem levar até você pessoalmente). Sua informação então é reunida pelos “mineiros”, os computadores que mantêm o sistema e são compensados, a cada cerca de 10 minutos, por seu trabalho em confirmar as transações.
Essa informação é adicionada ao livro-caixa e depois de confirmada como legítima, os novos dados são atualizados por todos os mineiros. O processo todo leva entre 10 minutos e uma hora, ante dois a três dias da transação via cartão de crédito. Algumas moedas digitais mais novas são capazes de finalizar a transação em segundos.
A tarifa é quase zero e as informações pessoais dos usuários não são divulgadas. As vantagens da moeda digital são ainda mais visíveis em mercados emergentes. Ela permite que trabalhadores imigrantes enviem dinheiro para suas famílias sem pagar 10% ou mais pelos serviços internacionais de pagamento.
O ainda desconhecido inventor da bitcoin — a pessoa ou grupo de pessoas conhecido como Satoshi Nakamoto — acabou oferecendo uma solução nova a um problema com o qual as sociedades têm enfrentado por séculos: a falta de confiança entre desconhecidos nas relações comerciais. Eles podem apenas confiar nos bancos, que assumem o risco de crédito. Mas o sistema financeiro também é vulnerável, como ficou claro na crise financeira de 2008.
Adaptado do livro: “The Age of Cryptocurrency: How Bitcoin and Digital Money Are Challenging the Global Economy Order” (A Era da criptomoeda: Como a Bitcoin e o dinheiro virtual desafiam a ordem da economia global, em tradução livre) lançado ontem nos EUA pela St. Martin’s Press.
(Por The Wall Street Journal) varejo, núcleo de estudos e negócios do varejo, retail lab, ESPM