Pagar dívidas voltou a ser uma dificuldade para grande parte dos brasileiros, que sentem o orçamento mais apertado diante da alta recente dos juros, do avanço da inflação e de condições menos favoráveis no mercado de trabalho.
Os indicadores de inadimplência no varejo, que haviam recuado em 2013, retomaram trajetória de alta neste ano, num momento em que o endividamento das famílias se situa nos maiores patamares já vistos e o comprometimento de renda resiste em cair. Essa mudança de cenário tem alterado os hábitos dos consumidores e já se reflete nas vendas do varejo, mas não assusta os especialistas, que descartam uma disparada nos indicadores de contas em atraso.
Entre março e abril, 1,3 milhão de brasileiros entraram para o cadastro de inadimplentes do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), que tem 53,8 milhões de devedores inscritos. O aumento no volume de registros foi de 2,1% frente a março e de 8,6% na comparação com abril de 2013, de acordo com a Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), entidade que gerencia o SPC Brasil.
Movimento semelhante foi verificado pela Boa Vista, administradora do Serviço Central de Proteção ao Crédito (SCPC), que constatou avanço de 5,6% no número de inadimplentes entre março e abril, descontadas influências sazonais – maior alta desde outubro de 2011 -, e de 5% em relação a abril de 2013. No banco de dados da Serasa Experian, o número de devedores cresce desde outubro de 2013, embora o total de registros em abril tenha sido 2,2% menor do que o apurado um ano antes.
No Banco Central, enquanto a inadimplência (atrasos acima de 90 dias) se mantém estável em 6,5% em relação a valores devidos desde fevereiro, os atrasos de 15 a 90 dias nos pagamentos avançam, tendo passado de 6,2% em fevereiro para 6,9% em abril.
“O encarecimento do crédito e o aumento dos preços diminuem o poder de compra dos consumidores. Com isso, sobra menos espaço para a quitação de dívidas”, diz Roque Pellizzaro Júnior, presidente da CNDL. O custo do crédito para pessoas físicas começou a subir em meados do ano passado, mas ganhou força em 2014, ao avançar quatro pontos percentuais em apenas quatro meses e passar de 38% ao ano em dezembro para 42% ao ano em abril, de acordo com dados do BC. Um ano antes, os consumidores pagavam, em média, 34,4% de juros ao ano.
O custo mais alto das operações é um dos fatores apontados como entrave à redução do comprometimento de renda, que tem se mantido em torno de 21,5% há mais de um ano. Os prazos mais curtos de financiamento – que passaram de 48,4 meses, em média, em dezembro para 47,1 meses em abril – também contribuem para um cenário de orçamento mais apertado, que conta ainda com a ajuda da inflação.
Enquanto isso, a renda real dos consumidores tem perdido fôlego. Dados do IBGE mostram que os rendimentos recebidos pelos trabalhadores vêm caindo desde o início do ano, apresentando três meses consecutivos de retração na comparação com o mês anterior. Os números referentes a março indicam diminuição de 0,7%, após queda de 0,6% em fevereiro.
O endividamento das famílias segue nas máximas históricas, tendo correspondido, em março, a 45,7% da renda acumulada nos últimos 12 meses, segundo o BC. Estudo do instituto Data Popular mostra que pagar contas é uma tarefa difícil de ser executada para dois terços dos brasileiros.
Com menos dinheiro no bolso, os consumidores passaram também a atrasar o pagamento de contas de água, luz e gás. O aumento, segundo a CNDL, foi de 12,38% em abril sobre o mesmo mês de 2013. “As pessoas estão fazendo capital de giro. Deixam de pagar um ou dois meses, depois pagam para evitar o corte no fornecimento e em seguida voltam a atrasar”, diz Pellizzaro Júnior.
Para ele, esse quadro tende a se estender por mais alguns meses. “Se o orçamento familiar permanecer apertado, a tendência será de volta ao mercado de trabalho das pessoas que deixaram de trabalhar devido à melhora na renda. Existindo vagas para todos, a inadimplência deverá cair, caso contrário, o movimento será em sentido oposto”, diz o presidente da CNDL. Ele não prevê alta acentuada da inadimplência, devido à maior seletividade de bancos e lojas na concessão de crédito.
Essa também é a percepção de Flávio Calife, economista da Boa Vista. Para ele, deve ser observado neste ano aumento de cerca de 5% nos registros de devedores, percentual pouco significativo após a redução de 0,3% em 2013. “É natural um aumento da inadimplência à medida que o crédito cresce”, diz Calife. “Uma expansão da inadimplência nessa magnitude não desestabiliza a relação entre dívida e crédito, porque a expectativa é de elevação ainda maior nos empréstimos, de cerca de 13% neste ano.” Para o economista, a situação só se tornaria preocupante se a inadimplência avançasse em ritmo superior à concessão de crédito, o que não deve ocorrer.
Nas lojas, o menor poder de compra dos consumidores já provoca mudanças nas prateleiras. “Os comerciantes estão trocando os produtos mais caros por outros mais populares”, afirma Pellizzaro Júnior. Essa alteração, segundo ele, explica a queda de 0,5% no volume de vendas do varejo restrito (que exclui automóveis e materiais de construção) apontada pelo IBGE na passagem de fevereiro para março. “As pessoas não estão deixando de comprar, estão apenas economizando ao trocar de marca”, diz o presidente da CNDL.
As mudanças nos hábitos dos consumidores também afetam a formação de estoques, diz Renato Meirelles, presidente do Data Popular. “Há uma preferência pelas embalagens econômicas, principalmente de produtos de grande consumo”, afirma. Estudo do Data Popular mostra que 70% dos brasileiros acreditam que os preços vão subir ainda mais neste ano.
(Por Valor Econômico) varejo, núcleo de estudos do varejo, núcleo de estudos e negócios do varejo, retail lab, ESPM