O retail-lab da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) é um lugar convidativo e agradável a quem aprendeu a gostar do universo do varejo e, especificamente, dos supermercados. É também o nome pelo qual o professor e coordenador do Núcleo de Estudos e Negócios do Varejo da ESPM, Ricardo Pastore, chama o laboratório experimental da disciplina que, na prática, funciona como sala de aula e ambiente de pesquisa sobre hábitos de consumo, estratégias de exposição e marketing no ponto de venda (PDV).

“A ideia do lab não foi minha, mas precisava de um maluco, como eu, para realizá-la. A discussão inicial se deu sobre uma possível dupla função do laboratório: queriam que fosse também loja, além de sala de aula e laboratório. Não tinha como: era uma coisa ou outra. Assim, o espaço virou sala de aula e laboratório para pesquisa de mercado. Foi um sucesso. Os alunos adoram e os professores também, porque desenvolvem novos métodos de ensino. Já se passaram dez anos e o retail-lab é muito procurado pelas indústrias, que fazem estudos de ‘árvore de decisão de compra’. Já o varejo não costuma vir.”

É nesse espaço que conversamos com Pastore e é onde ele nos fala de sua trajetória profissional, que, sem dúvida, credencia-o a ser não só professor de uma universidade que se notabiliza por ensinar na prática, mas, também, a ser um consultor e estudioso do tema, desenvolvendo ideias e fazendo leituras ousadas a respeito do futuro do varejo.

“Meu primeiro emprego foi no Grupo Pão de Açúcar [GPA]. Eu cursava Ciências Econômicas na PUC-SP [Pontifícia Universidade Católica de São Paulo] e um amigo comentou sobre vagas no GPA. Assim, fui parar no Pão, onde fiquei por 11 anos.” Pastore destaca a cultura corporativa do GPA que, segundo ele, ajudou a formar seus valores profissionais. Lá, ele trabalhou em análise de dados, estratégia de mercado, na área comercial e, depois de uma “pós” em Marketing na ESPM, na operação de lojas. “Foram dois anos como gerente de Vendas da divisão com o maior número de lojas do grupo, à época, o Minibox. Quem me deu essa oportunidade foi Ascar [Antonio Carlos Ascar, colunista de SH e personagem da seção Perfil SH, desta edição].”

Em 1990, num período crítico para o País e para o GPA, Pastore foi para o Makro, como gerente de Compras. “A cultura do Makro era diferente. Era uma empresa mais fria, enxuta e muito focada em resultado. Eu me adaptei bem e consegui fazer as mudanças que a empresa esperava que fossem feitas. Eu fazia a gestão de compras de frios e laticínios; peguei o departamento com um budget de [em valores atualizados] R$ 50 milhões e o entreguei com R$ 150 milhões.”

Isso se deveu a um forte trabalho para melhorar o desempenho de vendas dos perecíveis do Makro. “Quando fui para lá, outros executivos do GPA também foram levados: comporíamos uma equipe para atuar na área de perecíveis, para fortalecer essa divisão no Makro.” Pelo trabalho benfeito, Pastore foi promovido para gerente nacional de Operações de toda a área de Alimentos da empresa. “Nessa época, comecei a trabalhar mais com gerenciamento por categoria [GC]. Eu fiquei responsável por implantar o modelo na área de alimentos congelados.”

Porém, seu grande desafio ainda estava por vir. Depois de sair do Makro, ele assumiu a direção de Operações da Saraiva, à época, uma rede de livrarias pequenas, com atendimento de balcão. “Em 1996, a Saraiva era uma empresa familiar, média, mas que tinha uma visão de futuro. Perceberam que, com a estabilidade da moeda, havia grandes oportunidades, mas não dispunham do modelo de negócio adequado. Depois de um ano de trabalho, inauguramos a primeira megastore do grupo, no Shopping Eldorado, em São Paulo.” Hoje, é possível dizer que o modelo de megastore, de autosserviço, é dominante no varejo físico de livrarias.

Após a experiência na Saraiva, Pastore passou pela Editora Ática, também num projeto de varejo; esteve na Andersen Consultoria, em que tocou um projeto na rede de lojas de ferramentas, De Meo; teve uma rápida experiência na indústria, na empresa Café Jardim, e, em seguida, resolveu abrir sua própria consultoria, a Ricardo Pastore, pela qual atua até hoje. “Comecei com ela em 2002, passei a dar muitas palestras e cursos e isso me deu visibilidade. Vim parar na ESPM, porque a escola queria um professor de varejo e eu queria ter um pé na academia. Comecei a lecionar, em 2004, o programa de aulas sobre varejo que montei e não parei mais. Estou aqui há 12 anos e, para mim, é um orgulho”, diz Pastore, enquanto conversa conosco no retail-lab da ESPM…

Hoje, transformações conceituais, como a feita pela megastore da Saraiva, são bem mais comuns no mercado?

Com certeza. Antes, as mudanças eram mais lentas, levavam mais tempo. Por exemplo, uma grande inovação foi o surgimento dos supermercados. Foi revolucionário. Depois, vieram os hipermercados. Transformações estruturais com um intervalo de décadas entre si. Com o avanço tecnológico, essas mudanças passam a acontecer em períodos mais breves e os modelos existentes ficam sob risco constante. Então, costumo dizer que as ameaças aos modelos atuais não são os concorrentes do mesmo formato; quem tem uma rede de supermercados não vai perder sua empresa devido à concorrência de outro supermercadista, mas por algo novo que vai substituir o formato existente. Vivemos a era da disrupção, formatos entram em processo de arruinamento do dia para noite, enquanto outros se destacam, tomando o espaço.

Negócios que já surgem inseridos e atrelados às novas tecnologias ameaçam profundamente a existência de outros, mais tradicionais. O varejo, eu tenho a impressão, só começa a sentir essa ameaça de forma mais evidente, agora. A área de comunicação sente isso de forma mais evidente há algum tempo e a área de educação, com o ensino a distância, também começa a sentir.

Ou seja, considerando a evolução do e-commerce, é possível dizer que o empresário que quer sua empresa viva por muito mais tempo precisa estar na internet?

É preciso fazer um estudo com os supermercadistas, com as indústrias e com os clientes. É preciso entender como cada um, desses entes do processo, enxerga essa questão da venda digital. Eu acho que os empresários de todos os setores, com tantas influências tecnológicas, precisam seguir o exemplo da Apple. Num primeiro momento, as lojas físicas da Apple foram um fracasso. Aí, Steve Jobs [fundador da empresa, que estava na ativa, na época], em reunião, perguntou aos seus executivos especializados em varejo como se vendia, tradicionalmente, computadores no mundo. Eles descreveram uma loja típica, sei lá, uma Best Buy. Então ele disse ao executivo responsável: “Faz tudo diferente; vira de ponta cabeça”. Assim, surgiu a Apple Store, um fenômeno do varejo. O que eles fizeram? Um exercício de desconstrução…

Seu conselho para o varejista, então, é que ele procure fazer esse trabalho de desconstrução do seu próprio negócio?

Se eu pudesse dar um conselho aos supermercadistas, hoje, eu diria que, para ter sucesso em um negócio, é preciso incorporar o conceito que um iPhone tem. Transforme sua loja em iPhone. Reconstrua seu negócio inspirado, conceitualmente, no iPhone. Eu sei que não é fácil para um empresário que levou 20 ou 30 anos construindo seu negócio repensá-lo nesse grau. É muito difícil. Não só ele, mas também seus executivos e subordinados, em geral, terão bastante dificuldade para isso. Mas, de qualquer maneira, a saída é criar um novo negócio. É importante recomeçar; partir do zero. Jobs classificava isso de “destruição criativa”. Ele dizia: “Destrua o seu negócio e o reconstrua”. A Apple, sem dúvida, traz muitos exemplos nesse sentido. Quando houve a substituição do principal executivo da Apple Store, o que aconteceu há dois anos, assumiu a ex-CEO da Burberry, uma grife de moda [empresa do setor de cosméticos]. O mercado se perguntou: o que uma mulher da indústria da moda vai fazer na Apple? A ideia foi que ela levasse, para as lojas, os atributos intangíveis da marca. A experiência dela em uma grife de moda a torna capaz de aumentar a percepção de valor das lojas, fazendo com que elas sejam objetos de desejo das pessoas, conectando os atributos da marca ao PDV. Assim, quem entra na loja da Apple, precisa ter a mesma sensação de quem usa seus aparelhos. Tudo tem de ser uma coisa só.

Lançar tendências e se antecipar a transformações faz as empresas serem menos sensíveis a crises?

Estamos vivendo um momento de crise econômica e o empresário, nesses momentos, costuma dizer: “estou em crise, preciso tomar conta do meu negócio, preciso cortar custos, negociar melhor”. Então, ele se volta para dentro do próprio negócio. Ele se fecha mais ainda. Ele se defende, busca a segurança, volta para a toca. Porém, ao mesmo tempo que se vive uma crise, a gente vivencia uma mudança para lá de radical no mercado e essa mudança não espera, não dá tempo para você arrumar a sua casa. Não param de surgir novas tecnologias, os millennials cresceram e estão no mercado de trabalho, evoluindo, comprando, formando opinião. Eles chegam aos mercados de consumo com outros hábitos e, se sua loja não souber atendê-lo, ele vai procurar outro lugar para comprar o que quer. Em resumo, voltar atrás não é o caminho. Por que a Saraiva cresceu tanto em meados dos anos 1990? Porque ela inovou radicalmente. Há dois tipos de inovação: a incremental e a radical. Na primeira, você incrementa o que já tem, na outra, você transforma radicalmente. Cada empresa precisa se avaliar e procurar a melhor medida, mas num cenário como o que temos, é preciso ter coragem para inovar sempre.

Considerando o momento vivido, se não houvesse crise, as empresas menos capazes de inovar estariam tão expostas ao fracasso quanto em um cenário de crise?

É difícil dar um diagnóstico preciso, mas, na realidade, o momento favorável costuma provocar outro erro, que é a acomodação. Confia-se naquela velha máxima: “Em time que está ganhando, não se mexe”. Então, a crise agrava a expectativa negativa, mas essas mudanças profundas, que se tem vivenciado, são mais determinantes para a sobrevivência ou não de um empreendimento. Além disso, para adaptar-se aos novos tempos, não é preciso arriscar o patrimônio, formado geração após geração, de uma família. Nesse caso, o empresário pode se tornar, como investidor, o anjo de uma startup que, no futuro, poderá ser agregada ao seu próprio negócio. É importante mapear os negócios nascentes que podem, em breve, ganhar mercado do seu atual negócio. Assim, você está garantindo, de certa forma, o futuro de seu empreendimento. O varejista que for capaz de se antecipar a uma mudança radical, radical mesmo, “corre o risco” de se tornar a maior empresa do mundo. Hoje, a maior empresa do mundo é varejista: o Walmart. Em breve, deverá ser a Amazon.

Conceitualmente e em termos de proposta, bem diferentes, por sinal.

A principal diferença é que uma concentra, atualmente, suas atividades em lojas físicas, a outra é especialista no mercado on-line. Mesmo as lojas físicas da Amazon, exploram a interatividade, têm outra proposta. A verdade é, com o passar do tempo, empresas do on-line estão enxergando a possibilidade de também entrar no off, mas trazendo uma proposta diferente, em linha com o desejo dos consumidores contemporâneos que eles conhecem melhor. Então, a ameaça que as empresas on-line trazem para as tradicionais não é só o e-commerce, aliás, é menos o e-commerce do que o aprendizado que a experiência on-line lhes trouxe, permitindo-lhes desenvolver lojas off-line mais atuais e conectadas às demandas dos consumidores do futuro. A gente falou da Amazon, mas todas as empresas que têm sucesso no e-commerce querem ter também a loja física. A fórmula ideal desse novo varejo físico ainda não chegou, há espaço a desbravar. Todo o varejista deveria estudar isso a fundo, considerar que as pessoas vão querer comprar dele on e off-line. Ele precisa saber qual é a melhor maneira de comprar em ambos os canais. Essa expectativa já existe, não é novidade para ninguém; é preciso se dedicar a isso.

Qual é a principal razão dessa vantagem das empresas on-line?

O modelo dessa loja do futuro parte do Big Data. Essas empresas conhecem de perto, pelo comportamento do consumo digital, as características desses consumidores. Sabem o que querem e pelo que se interessam. Eles têm muitos dados sobre isso. Em breve, serão capazes de saber que produto você vai comprar no dia seguinte e a que horas, aproximadamente, com base numa receita médica que recebeu. As informações disponíveis hoje, na internet, são inúmeras e as empresas não aproveitam nem 1%. Em resumo, o que vemos é o empresário do varejo brasileiro esperando para ver o que vai ou não dar certo para depois escolher seu caminho. O problema é que, dessa forma, a escolha pode acontecer quando o concorrente já tiver pavimentado a estrada para a liderança. Num cenário pior, pode até significar a quebra da empresa que ficou esperando. Enquanto isso, quem já se dedica a esse universo, sai na frente.

Essa característica de esperar para ver o que vai dar certo é uma cultura do nosso empresariado?

Sim, é comum entre nossos empresários, porque nosso mercado não tem grande competição se comparado a outros mercados mais avançados. Por sermos emergentes, podemos nos dar ao luxo de esperar. Aliás, não é à toa que somos um mercado emergente: temos mais demanda do que oferta e, enquanto for assim, o dono do ponto de venda terá uma situação de conforto.

Mudando de assunto, vivemos um momento de extremismos políticos no País, o que, naturalmente, impacta o varejo. Algumas marcas, como o Habib’s, até se pronunciaram. Como você vê esse tipo de postura?

Isso tem de ser feito, sim, mas com cuidado. É preciso se posicionar. Não dá mais para dizer que a empresa não se mistura com essas questões. Não existe mais essa conversa de que: em casa eu sou de um jeito e, no trabalho, de outro, sou profissional. As pessoas são as pessoas. Consumidor é ser humano e o marketing moderno deve tratá-lo assim. [Philip] Kotler escreve isso em seu livro “Marketing 3.0”. “Transforme sua loja para o ser humano, não para o consumidor”, escreve.

Essa cultura de engajamento em questões políticas e sociais é menos comum aqui do que nos Estados Unidos, por exemplo, não é?

Sem dúvida, nossos empresários têm bem mais dificuldade em se posicionar. Lá, é comum as empresas fazerem o que o Habib’s fez. Na NRF, a gente sempre vê isso. O presidente da Starbucks, uma vez, deu uma declaração crítica ao governo dos EUA. Ele não era contra o governo, mas divergia em alguns pontos e fez questão de se posicionar com ênfase. O empresário brasileiro tem receio, porque não é raro a classe empresarial ser manipulada em processos políticos e, no fim das contas, a bomba estourar só nas mãos dos empresários. Mas, seja como for, eu acho que um setor que representa mais de 5% do PIB é muito importante e tem de colocar sua voz. Não acho que tenha de tomar partido, mas tem de defender sua causa, defender o desenvolvimento do mercado de consumo e a economia do País. Eu acho que não importa se de direita ou de esquerda, se o governo respeita a democracia, as leis e trabalha pelo desenvolvimento do País, ele deve ser apoiado, senão, a crítica faz parte.

(Por Abras) varejo, núcleo de varejo, retail lab, ESPM