>Daniele Madureira e Lílian Cunha, de São Paulo
18/12/2009
Cláudio Belle / Valor

No shopping: Sousa, dono da “Camuflados de Jesus”, fatura R$ 1,2 milhão por ano; e Egídio Júnior (sentado) vendeu 200 sarongues para o sacoleiro Cardozo
À rua São Caetano, zona central de São Paulo, o movimento é intenso. São apenas duas da manhã de quinta-feira, dia 17. Ônibus enfileiram-se rumo à rua Monsenhor de Andrade. Bancas à mercê do sereno estão repletas de vestidos pendurados em cabides, iluminados por lâmpadas que se equilibram por um fio. O cheiro de milho verde e de churrasquinho se mistura ao funk e ao samba que vêm dos CDs piratas dos camelôs.

Os ambulantes da rua Monsenhor de Andrade, onde funciona a tradicional “Feirinha da Madrugada”, no bairro do Brás, disputam consumidores com os ex-camelôs, que se tornaram comerciantes legalizados e com banca fixa no Shopping Popular da Madrugada, na mesma rua.

No centro da disputa, um público que chega apressado, trazendo nos ombros imensas sacolas. No bolso, no mínimo, R$ 1,5 mil em dinheiro para gastar com produtos para revender. Só neste mês, os sacoleiros movimentam no Brás e na rua 25 de Março pelo menos R$ 50 milhões por noite. Tanto dinheiro chamou atenção até da multinacional Nestlé, que já se instalou no centro de compras mais popular da cidade.

O Shopping Popular da Madrugada deve atingir seu pico de vendas e de público neste sábado, último antes do Natal, quando são esperadas 80 mil pessoas. Criado há quatro anos pela Prefeitura de São Paulo, como alternativa legal aos ambulantes, o lugar se transformou na nova atração do turismo popular de compras da cidade.

Com roupas baratas, acessórios e artigos eletrônicos, seu grande trunfo é contar com estacionamento para ônibus – as 240 vagas originais foram ampliadas para 390, tendo em vista o aumento da procura. Também foram criadas 100 vagas para vans. Cada ônibus paga R$ 50 por noite e, a van, R$ 30, serviço que antes era gratuito, mas começou a ser cobrado este ano.

Com isso, os sacoleiros que vêm das mais variadas regiões do país, principalmente Sudeste e Sul, fazem do Shopping sua base de apoio: compram na feirinha, no próprio Shopping e, ao amanhecer, nas lojas do Brás e da rua 25 de Março. Enquanto isso, vão guardando as mercadorias nos ônibus.

Quem administra o espaço de 140 mil metros quadrados é a empresa GSA, que paga aluguel de R$ 137 mil ao governo federal, uma vez que o terreno, cortado pela linha do trem, pertencia à antiga Rede Ferroviária Federal SA (RFFSA).

Os donos das bancas pagam entre R$ 340 e R$ 480 ao mês para oferecer sua mercadoria em um quadrado de dois por dois metros – preço que varia de acordo com a localização. A GSA tem se esforçado para atrair grandes empresas.

A primeira delas foi a Nestlé, que inaugurou em novembro um estande de 250 metros quadrados onde vende água, sorvete, biscoito, chocolate e panetones, a preços bem menores do que nos supermercados da capital.

A empresa vende pelo menos 1 mil panetones por noite na feira. “O estande vai ficar por lá. É fixo. Depois do Natal, vamos vender Nescafé e Nescau Prontinho para o pessoal da madrugada”, diz Alexandre Costa, diretor de regionalização e base da pirâmide da Nestlé. A divisão foi criada especialmente para cuidar das ações da multinacional relacionadas às classes C, D e E. “Elas respondem por 80% do consumo de alimentos no país”, justifica. “Para estar perto delas, fomos ao Brás”.

Giovan Ferreira, diretor de marketing da GSA, diz que o local tem boa infraestrutura e comodidades que a rua não oferece: pousada gratuita com 200 leitos para descanso e banho dos motoristas, banheiros (a R$ 1), segurança privada, atendimento médico de emergência, além de conveniências como farmácia e caixa 24 horas do Bradesco. “Nosso sonho é ter uma agência bancária aqui dentro”, diz. O impedimento, diz ele, está no tempo do contrato de locação, que é renovado anualmente pela GSA com o governo federal. Já os bancos trabalham com prazo de 10 anos. “Mas estamos conversando com todos os grandes bancos”, diz.

Os consumidores concordam que é mais seguro comprar dentro do shopping do que na feirinha. “É muita muvuca [confusão] lá fora”, diz Celina Cit, 52 anos, ex-enfermeira que tem loja em Morretes (PR), e se esforçava em carregar sua imensa sacola para dentro do ônibus. Diferente da maioria, a estudante de engenharia química Tainã Leal, 22 anos, veio de avião. “Não dá tempo de fazer tudo se venho de ônibus”, diz ela, dona de loja em Vitória (ES), que estava preparando-se para ir também à rua 25 de Março. Só no shopping, gastou R$ 2,5 mil. Pouco, perto do que investiu Rhode Ramos, de 28 anos. “Costumo gastar R$ 5 mil quando venho aqui, duas vezes por mês. Mas agora me superei: investi R$ 15 mil”, diz ela, que tem loja de roupas em São Manuel (SP).

Deusdete de Novaes Sousa, 45 anos, dono da “Camuflados de Jesus”, está desde o início do Shopping da Madrugada e reconhece o quanto a iniciativa deu outro fôlego ao seu negócio. “Fui ambulante da 25 e já recebi muita borrachada da Polícia Metropolitana”, diz ele, lembrando que começou seu negócio com apenas R$ 500 e hoje fatura R$ 1,2 milhão por ano, com dois pontos no shopping.

A inspiração para sua coleção – roupas com estampas camufladas – teve origem divina, diz ele. “Fui gerente de loja, tive empresa e perdi tudo. Mas um anjo me pediu que não desistisse e registrasse a marca ‘Camuflados de Jesus'”, diz ele que, como bom evangélico, doa 10% do que ganha à igreja.

Egídio Júnior, dono de um box de roupas no shopping, tem história semelhante. “Já fui pego pelo rapa [polícia] duas vezes”, diz ele, sobre os tempos em que era camelô na 25 de Março e na rua Oriente. “Toda vez que o rapa [polícia] me pegava, eu perdia tudo: mercadoria, dinheiro. Ia à lona. Agora estou tranquilo aqui”, conta Júnior, que tem, com a família, uma confecção de roupas de malha. Nada em sua banca custa mais de R$ 25,00.

Nas primeiras horas da madrugada, o movimento é tranqüilo e silencioso no shopping – ao contrário do que acontece quando vai amanhecendo. Nessa primeira fase, a maioria dos compradores é de “profissionais da sacola”, como se define Alessandro Cardozo, que sai da cidade gaúcha de Rio Grande pelo menos uma vez por semana em direção ao shopping. “Venho de avião e volto de ônibus. Sou funcionário de uma rede de lojas e compro para os donos”, disse ele, às 4h da manhã de ontem.

Cardozo, que empacotou 200 calças do tipo sarongue de malha para levar para o Su, e Egídio Júnior, que vendeu as sarongues, foram uns dos poucos no shopping que concordaram em falar com a reportagem do Valor. Muitos têm receio de dar entrevista porque, segundo os lojistas locais, agentes da Receita Federal estiveram por lá em outubro, justamente disfarçados de jornalistas. “Eles já vieram vestidos de mendigo e de sacoleiro também”, acrescenta o comerciante Augusto Alencar. As batidas e investigações do Fisco têm se tornado frequentes nos últimos três ou quatro anos, depois que chegaram ao shopping comerciantes (principalmente chineses) que vendem quinquilharias e eletrônicos.