O desaquecimento da economia, a alta dos juros e as maiores exigências dos bancos para liberar crédito trouxeram de volta ao varejo uma tradicional opção de pagamento, o carnê. A rede de eletrodomésticos Ponto Frio planeja ressuscitar o talão, usado como alternativa ao cartão de crédito e ao financiamento de instituições financeiras. O sistema já está sendo oferecido como projeto-piloto em lojas de diferentes cidades, e os resultados devem ser analisados ainda nesta semana.

Nas Lojas Cem, rede paulista de móveis e eletrodomésticos, o carnê já responde por 60% das vendas. A modalidade de pagamento é apontada como a responsável pelo crescimento geral do movimento da rede de 18%. De acordo com o IBGE, as vendas no comércio varejista caíram 0,7% em junho e subiram 4,9% no ano. A loja opera com recursos próprios e parcela as compras em até 20 vezes no talão.

— Controlamos a nossa política de aprovação de crédito via carnês. O nosso índice de aceitação é de 70%. Se tivéssemos parceria com um banco, seria menor — afirmou o supervisor geral da empresa, José Domingos Alves.

A avaliação é que esse tipo de venda é mais rentável do que pagar as taxas cobradas pelas administradoras de cartão de crédito. Sem este “pedágio”, a rede cobra de 3,75% a 5,43% ao mês, contra uma taxa média de 5% ao mês nos bancos. A estratégia é também uma forma de fidelizar o cliente, que costuma ir até a loja para pagar a prestação. Alves ressalta, porém, que, junto com o uso do crediário, a taxa de inadimplência (medida pelos atrasos acima de 60 dias) também cresceu: passou de 4,3% em 2013 para 4,7% neste ano.

— A volta do carnê é resultado principalmente da queda nas vendas. As lojas estão se virando para atrair o consumidor, porque os estoques estão muito elevados, seja de automóveis, geladeiras ou camisetas. Estão oferecendo carnês, cheque pré-datado, que também disseram que ia acabar, mas continua forte. O carnê tem a vantagem de atender pessoas que já esgotaram seu limite no cartão de crédito ou querem deixar o cartão para outras coisas. Mesmo que eu pague uma geladeira em 12 vezes, o valor abatido do meu cartão é o total, uns R$ 1500. Isso acaba com o limite — explica Miguel Ribeiro de Oliveira, vice-presidente da Associação Brasileira de Executivos de Finanças.

‘Tendência é inadimplência subir’

Foi o que aconteceu com o açougueiro Juarez Alves de Jesus, de 24 anos. Como o saldo para compras em seu cartão de crédito era insuficiente para pagar a TV de 32 polegadas, de R$ 998, recorreu ao carnê.

— No carnê, consigo limites maiores. Tenho um cartão, mas o juro, se eu não pagar em dia, é muito alto. E também já não tenho limite — disse.

Para driblar a falta de espaço para novas dívidas nos cartões dos clientes e a restrição cada vez maior dos bancos — temerosos de uma alta da inadimplência — muitas lojas, sobretudo no comércio on-line, dividem a mesma compra em dois cartões de crédito. O recurso é usado, por exemplo, por redes como Americanas.com, Submarino e Ricardo Eletro.

— Os bancos têm receio de emprestar e não receber, porque as taxas de juros estão altas. Quem vai conseguir pagar empréstimos de longo prazo com taxas de juros de 4% a 5% ao mês? As famílias estão muito comprometidas com dívidas de longo prazo, como financiamento habitacional, empréstimo consignado e estão usando o cartão de crédito e cheque especial para cobrir buracos no orçamento. A tendência é a inadimplência subir — diz Carlos Thadeu de Freitas, economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio (CNC) e ex-diretor do Banco Central (BC).

Ele alerta que, ao concederem crédito por conta própria, as lojas ficam com o risco do calote e desempenham função que não é do varejo, mas foi assumida porque “comerciantes precisam vender”. Segundo Freitas, o destaque da pesquisa de Consumo das Famílias da CNC, que será divulgada amanhã, é a queixa dos consumidores sobre a dificuldade de acesso a crédito.

Especialistas afirmam que, enquanto a média de aprovação de cadastros pelos bancos em operações com redes de lojas é de 30%, no varejo chega a 60%. Outro atrativo é o prazo de pagamento. No cartão, o limite máximo costuma ficar entre dez ou 12 meses. No carnê, com tradição no pagamento em parcelas a perder de vista, são encontrados planos de 24 prestações.

Os varejistas dizem que o aumento de receitas compensa a eventual alta da inadimplência. Outra vantagem é que não precisam dividir a receita de juros.

Quem já usava o talão do crediário não abre mão. Pioneira no uso do sistema no país, a rede Casas Bahia trabalha com carnê desde o início de suas atividades, em 1957. O sistema respondeu por 14,5% das vendas da empresa no segundo trimestre. O cartão de crédito liderou, com 60,5%, e as vendas à vista responderam por 25%. Segundo a Via Varejo, holding das Casas Bahia e Ponto Frio, toda a operação de carnê é e continuará a ser feita com recursos próprios. O mesmo ocorre com a Tele-Rio e com as lojas Insinuante.

Dívida consome mais de 20% da renda

O economista-chefe da Associação Nacional das Instituições de Crédito e Financiamento (Acrefi), Nicola Tingas, diz que o crescimento do uso dos carnês no varejo é um movimento de “economia defensiva”, uma forma de girar o estoque e controlar custos:

— É preciso ter habilidade para avaliar esse risco do consumidor. Não pode ser muito grande para não comprometer a rentabilidade da empresa — explicou.

Uma das maiores preocupações dos especialistas diz respeito ao aperto no orçamento dos clientes. Segundo o BC, o comprometimento da renda mensal do brasileiro com o pagamento das dívidas registradas no sistema financeiro está em 21,4%,ou seja, a cada R$ 1 mil recebidos, ele paga mensalmente R$ 214 em prestações.

— Essa taxa se refere apenas ao pagamento de financiamentos, não inclui as despesas fixas, como água, luz, aluguel. É uma taxa muito alta para um país onde as pessoas têm que pagar escola particular, plano de saúde e tantas outras despesas fixas — diz o ex-diretor do BC.

Flávio Calife, economista-chefe da Boa Vista Serviços, que também administra o Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), pondera que, apesar de o nível se manter relativamente estável, o menor crescimento da renda e a inflação podem comprometer a capacidade de pagamento.

Com essa preocupação, a Cybelar, rede que atua no interior de São Paulo e no sul de Minas, analisa os pagamentos de antigos clientes. Efren Nunes, diretor de crédito e cobrança da rede, diz que a decisão de assumir a operação de carnês se mostrou acertada diante de um cenário de bancos mais restritivos.

O carnê é também o primeiro passo para quem não tem conta em banco ou não pode comprovar renda.

— Parte de nossos clientes de carnê é formada por quem nunca tomou crédito — explicou Edeni Malta, diretor da financeira das Lojas Colombo, que atua na Região Sul do país.

(Por O Globo) varejo, núcleo de estudos e negócios do varejo, retail lab, ESPM